Sinceramente,
acredito que na discussão política temos que abandonar, o mais rápido possível,
a noção de verdade e passar a discutir a questão em termos de intenção. Enquanto
acharmos que um órgão, partido ou instituição detém a verdade absoluta sobre
uma questão, daremos margem a autoritarismos e violências. A ideia presente no
Evangelho de João de que basta conhecer “a verdade e a verdade vos libertará”,
tão importante no mundo religioso, pode ser igualmente aplicada para o universo
social, cultural, científico etc.
Por
essa perspectiva, a vida passa a ser percebida como um infinito progresso em
direção ao conhecimento verdadeiro e as épocas e saberes passados como dignos
de serem descritos como meras superstições. Essa estrutura, por exemplo, está presente
na forma que tratamos nossas crianças, velhos ou adversários, tidos como aqueles
que “ainda” estão afastados da verdade, da ciência ou que possuem um saber
anacrônico e ultrapassado. Como uma máscara que esconde a verdadeira pessoa do
ator em cena, a verdade deveria ser revelada para que o essencial fosse capturado.
Retirados os véus que separariam a realidade das aparências, os seres humanos
então poderiam enfrentar de maneira mais sóbria suas reais condições de vida.
Seja por determinação divina ou devido a uma ideologia da classe dominante, toda
ilusão deveria ser retirada para a efetiva libertação e autonomia do indivíduo.
Todavia,
essa percepção muito em voga, tanto na esquerda quanto na direita, pode esconder
mecanismos reais de opressão, pois percebe a guerra pela verdade quase como um
comportamento missionário. Aquele que teve acesso ao conhecimento tem a
obrigação moral de revelá-lo ao outro. O que a um se afigura como uma missão
civilizatória pode, por outra perspectiva, esconder a violência e autoritarismo
presentes nesse processo. O imperialismo foi justificado assim, seja pelo
espanhol que prometia levar o cristianismo ao indígena, seja pelo europeu que
se empunha “o fardo” de levar a civilização à África. Como conclusão, toda exploração
imposta às sociedades coloniais, para que tivessem acesso “a verdade”, é jogada
para baixo do tapete.
Para
isso, o processo é simples. Basta definir o bem, o justo, a liberdade como uma
coisa específica, aprisionando-os em uma categoria e interpretando tudo o que
não é aquilo que defendemos como símbolos do mal, da injustiça e da tirania. Algo
bem comum em nossos dias. Sob tal perspectiva, o mundo é simples, encaixado em
cores binárias e em argumentos tautológicos. Toda a complexidade da vida
é reduzida em exércitos enfileirados em lados opostos: a luta entre o bem e o
mal.
Com
esse pensamento, a categoria se adianta ao discurso, à prática. Assim, é
possível ver pessoas dizendo defender a “democracia”, pedindo intervenção
militar ou se dizendo “patriotas”, por não vestir vermelho, mas apoiando a
privatização do pré-sal e da Petrobrás. Essas, quando argumentamos algo que se
afaste de suas expectativas ou entendimento, querem ganhar no grito, na
violência. Têm um comportamento extremamente autoritário, pois se frustram com
discordâncias e argumentos, querendo nos impor aquilo que definem como “verdade”
goela abaixo, mesmo que seus discursos sejam contrários à ideia que dizem justamente
defender. Não é a verdade que interessa, mas o poder. A realidade se transforma
em uma disputa para revelar quem tem mais força.
Caso
queiramos fugir dessa abordagem, devemos reconhecer que o objetivo não é o
conhecimento verdadeiro, mas entender os mecanismos que permitiram que um saber
se sobrepusesse a outros, em nome da fé ou da ciência. Ou seja, quem definiu
que tal coisa é tal coisa, as intenções contidas na formulação e realização de
um ato e que, de fato, o conflito em torno da verdade é uma guerra pelo poder. Devemos
estar conscientes de que o conhecimento não nos liberta necessariamente, mas é
um objeto em disputa por diferentes sujeitos e discursos.
A
verdade não é algo que precisa ser revelada. Não é um ponto de chegada, mas deve,
ao contrário, ser um ponto de partida. Devemos nos questionar quais são as
intenções que aquelas pessoas têm para defender tal perspectiva, ou os motivos
das omissões e escolhas feitas por determinado povo ou instituição. Por que
utilizam noções como “patriotismo”, “democracia”, “corrupção”, para defender práticas
e discursos que significam justamente o seu contrário?
Ainda
hoje agimos dessa forma missionária em discussões virtuais, mas acredito que
não é a questão. Comportamos-nos como se a verdade estivesse aí para todos
enxergarem e fosse motivo necessário e suficiente para a salvação. No entanto,
às vezes, tal postura é improdutiva, apenas uma perda de tempo. Uma regra que pus
a mim mesmo e que, apesar de escorregar às vezes, tento seguir é: não discuto
categorias, mas argumentos. O outro sempre tentará reduzir seu raciocínio sob
uma categoria: “petista”, “esquerda caviar”, “comunista” etc.
Infelizmente,
em muitos casos, as pessoas acreditam naquilo que já estavam inclinadas a
acreditar no começo, por isso não interessam estatísticas, argumentos etc. A
conversa é inútil. Dessa forma, seria melhor abraçar o caos e ao invés de buscar
a revelação da verdade, devíamos reconhecer que há uma cacofonia de vozes e
interesses em disputa. Nessa perspectiva, acredito que aceitar essa diversidade
é o primeiro passo para fazermos da luta política algo mais produtivo.