terça-feira, 10 de junho de 2014

Virada à esquerda!


Gravura do frontispício do poema "The World turn'd upside down" de John Taylor



“A liberdade é o homem que girará o mundo de cabeça para baixo, por isso não espanta que tenha tantos inimigos”.
G. Winstanley


Esses dias, estava lendo os comentários dessas páginas de esquerda no Facebook. Geralmente encontramos “miguxos” falando que o capitalismo é justo, endeusando a Margareth Tatcher e o Ronald Reagan, tentando justificar que o nazismo foi uma experiência de esquerda, etc. No entanto, para minha surpresa, vi muitas pessoas se dizendo “ex-direita”. No começo achei engraçado, porque era algo quase religioso, como se dissessem: Andava mal, aí encontrei a luz! A graça, todavia, acabou quando lembrei que eu mesmo passei por esse processo. Comecei a pensar nele e tudo ficou claro!

Acho que nunca fui de direita. Na verdade, nem sabia o que era ser de direita ou de esquerda. Eu era um roqueiro que me achava muito politizado por cantar “Que país é esse?”. Hoje vejo com vergonha certas declarações e canções de alguns músicos. Na mesma época comecei a tocar guitarra, profissão que havia escolhido. Idolatrava as opiniões dos meus professores de instrumento. Achava “foda” os comentários do Arnaldo Jabor, etc. Sentia-me um adolescente politizado.

Minha primeira desavença com o Jabor nem foi política, foi musical. Em decorrência da morte do Dimebag Darrell, antigo guitarrista do Pantera, ele falou uma merda imperdoável. Comparou shows de rock a missas negras fascistas e quase disse que o Dimebag foi culpado de seu próprio assassinato, devido à violência que era pregada nas músicas do grupo. Para quem tocava riffs como “Cowboys from Hell”, e balançava a cabeça ao som de “Mouth for war” e “I’m broken”, escutar uma besteira dessas era doído. Sempre escutei Pantera e nunca quis matar ninguém. Era o típico comentário daquela galera que queria impedir os vídeo-games porque eram muito violentos, mas não se preocupavam com a violência do mundo. Veja a reportagem do Jornal da Globo abaixo:




Agora, se ele falava uma idiotice dessas comentando de música, imagina de política. Mas não pensei nisso, só deixei de escutá-lo (fiz bem). Mas isso foi fim de 2004 (porra, já vai fazer 10 anos que o Dimebag morreu!!!). Em 2005 entrei na faculdade de música. Durante todo esse período, minha leitura mais social das mazelas da sociedade vinha da religião. E, até por causa disso, minha “ajuda” não ia além da caridade. Era contra políticas públicas para a interrupção de uma gravidez indesejada, era meio “homofóbico” (não tinha realmente fobia, desde que gays não chegassem perto de mim), fazia piadinhas preconceituosas, achava o comunismo um absurdo, pois aprendi na escola que o capitalismo é que era bom, pois você tinha “liberdade”, etc. E, assim, caminhava meu pensamento político. Não sei se era de direita, mas pelo menos era um ignorante, hehe. Tá, eu era um reacinha sim.

Em 2007 entrei na faculdade de história e entrei em crise. Minha forma unívoca de pensar as coisas era pouco condizente com a diversidade e pluralidade que as questões eram apresentadas. No começo, achei que teria uma aula de cursinho um pouco mais alongada. Confesso que fiquei um pouco decepcionado com o curso e até pensei em trancar. Achava um absurdo ter que entender o que foi o “Renascimento” para três ou quatro autores. “O” Renascimento não tinha sido um só? Para mim, era complicado entender que havia uma pluralidade de opiniões. Mas, enfim, decidi dar uma chance ao curso.

Proferia discursos do tipo: o problema do Brasil é que os patrões pagam muitos encargos; ah vai, pode ser bicha, mas não precisa se afetar, etc. Via com desconfiança a camiseta do MST do Cainho (um beijo Cainho): como assim, usar uma camiseta desses baderneiros que “invadem” a propriedade dos outros. Mas não dizia nada. Enfim, logo percebi que o que conhecia da vida havia sido moldado pela mídia brasileira. Ou seja, não conhecia nada. A sociedade era mais complexa. Para alguém que vinha do interior de São Paulo, as experiências, contatos e leituras foram fundamentais para a alteração da minha mentalidade. Um novo mundo se abria!

Naquele ano, ainda, me envolvi com o C.A de história. Além dos bares, minha formação se deu nas assembleias gerais! Foi um processo muito importante. Escutava coisas que não concordava, mas levava para casa e refletia melhor. Era uma ofensa ser chamado de “pelego” e precisava pensar direito antes de falar. Com minha experiência de professor de música e dos palcos nunca tive vergonha de falar em público. Então, pegava o microfone e ia à frente falar as minhas opiniões, que, à época, se ainda não eram totalmente de esquerda, no mínimo eram diferentes daquelas que tinha antes de entrar na faculdade.

A virada à esquerda tinha sido iniciada. A experiência foi fundamental nisso. Depois te conviver com muitos amigos gays fantásticos, feministas e de movimentos sociais, deixei de pensar coisas escrotas do tipo: nada contra, mas... A experiência com a assembleia me fez questionar hierarquias e autoridades. Passei a enxergar que os de cima nem sempre querem o melhor para você. Enfim, mas ainda faltava ainda um arcabouço metodológico.

Isso veio com um livro: O mundo de ponta-cabeça, do historiador marxista inglês Christopher Hill. Nesse texto, o autor trabalhava as ideias radicais das seitas puritanas durante a Revolução Inglesa. Grupos como os levellers, diggers, ranters, quacres, etc., eram apresentados. Gostava da época (século XVII), do lugar (Inglaterra) e do tema (Revolução Inglesa). Isso, mais o fato do meu professor à época (hoje meu orientador) falar que esse era seu livro favorito me desarmou, mesmo sabendo que era um “historiador marxista”. Achava que sabia o que ia encontrar lá: alguém tentando mostrar como o capitalismo era perverso. De fato foi isso que encontrei, mas terminei o livro concordando com o Hill.

Christopher Hill se propunha estudar a revolução dentro da Revolução. Ou seja, os movimentos populares que se insurgiram com as novas possibilidades que se abriram durante as décadas de 1640-1660, mas que foram reprimidos, depois que o poder político foi conquistado. A típica atitude do “valeu, obrigado por ajudarem a gente, mas vocês são muito radicais. Então, voltem para o submundo agora. Não precisamos mais de vocês”. Hoje, vejo aqueles que tentam cooptar os movimentos sociais para criticar o governo com aquela sensação de “já vi esse filme”.


Comentário no vídeo "Juca Kfouri e o protesto legítimo de sem teto"


Sempre fui de escrever muito nas margens dos textos que lia, ainda mais nesse período (2008) em que não tinha muitas referências para comparar. O mundo de Ponta-cabeça foi o primeiro livro que li sobre esse tema, que hoje já vão uma iniciação científica e uma dissertação de mestrado. O fato é que, naquele momento, tudo era novo para mim. Não apenas o assunto, mas a abordagem. Nisso, as marginálias denunciam minha busca por tentar entender aquele mundo novo seiscentista. Mas, mais do que isso, revelam a minha mudança; o momento em que tomei o caminho à esquerda.

Já li algumas vezes esse livro, assim não sei se as anotações são da primeira, da segunda, da terceira ou da quarta vez que o li. Mas só foi necessária uma leitura para tomar o caminho à esquerda. Sei que alguns comentários são da vez inicial porque há um grande “X” em cima do comentário. Como se falasse, “você está defecando pela boca, Jota de 2008”.

Além dos meus desenhos engraçados para representar que o rei Carlos I era considerado o Anticristo durante a guerra civil, os assuntos e as anotações são diversos. Mas, lembro que o que mais me chamou a atenção e contribuiu para essa mudança de direção foi a análise que o Hill faz do movimento digger ou os chamados levellers autênticos.

O livro mostra minha indignação crescente. Em um tópico sobre as tentativas de acabar com os terrenos comunais e as “justificativas” ideológicas para isso, escrevi um “que cuzão!” na margem. Era como se as merdas que vieram posteriormente tivessem tido origem ali. Segundo um autor coevo, “a existência de terrenos comunais de pastagem... somente perpetua a indolência e a mendicância dos camponeses pobres”. Sim, esse é um discurso de um inglês seiscentista e não de um brasileiro do século XXI falando sobre o “bolsa-família”.

Mas como dizia, antes da minha digressão indignada, o capítulo que mais me chocou foi o sétimo, em que o historiador falava dos diggers, os comunistas do século XVII como chamou. O movimento é conhecido por tomar a colina de St. George e implantar ali um sistema de posse comunal da terra.

Levantavam-se contra a opressão dos ricos e nobres, defendiam discursos igualitaristas baseados na igualdade de nascimento entre os homens, professavam que a propriedade privada era uma prática anticristã, etc. O movimento é, sem dúvida, o queridinho de Christopher Hill e o pensamento de seu líder Gerrard Winstanley, certamente um dos mais estudados pelo historiador.

Chritopher Hill

Winstanley falava contra o mau aproveitamento da terra e de uma melhor distribuição, coisa que se fosse realizada faria da Inglaterra a nação mais poderosa. Para ele, democracia política era similar à democracia econômica. Não poderia haver igualdade em um lugar onde houvesse propriedade privada. Nisso, a dignidade humana só seria possível dentro de uma propriedade comunal da terra. Pra mim, criado na mente do “capitalismo é o melhor” era um pouco chocante essa outra perspectiva. Aí começam os meus comentários/conversas com o texto.

Em uma margem escrevi o seguinte comentário, a respeito de uma economia comunal: “se não houvesse compra e venda, não haveria avanço industrial. Ninguém investiria em algo assim para não obter lucro. A não ser que a indústria fosse regulada pelo Estado, mas a ideia era acabar com o Estado. Então ficamos ai em uma aporia”. Vergonha do Jota de 2008, que só conseguia pensar na chave que conhecia. Mas a pergunta era pertinente. Ficar em dúvida é o que não podia. Mesmo que o Hill não fosse responder, a solução do problema já se encontrava no próprio texto.

Para Winstanley, a divisão de trabalho existente deveria ser extinta e recompensas para invenções fomentadas. Segundo indicava, o medo da pobreza é que impedia inovações. É sintomático pensar isso em nossa sociedade, em que a necessidade de pagar as contas nos impede de produzir para nós e para o bem e desenvolvimento da sociedade. De quem é o nosso tempo? De quem é o fruto de nosso trabalho? Nas palavras do líder digger, “o poder régio esmagou a inspiração de conhecer e jamais permitiria que esta se alçasse em toda a sua beleza e plenitude”. Era aquela estrutura que criticava que impedia o desenvolvimento. Seu pensamento visava o florescimento do país, da república e de seu povo e não o simples aumento da produção, aos moldes dos economistas atuais.

Conforme explicava, “a defesa da propriedade e do interesse individual divide o povo de um país e do mundo todo em partidos, e por isso é a causa de todas as guerras, carnificinas e pendências que vemos por toda parte”. O mal era a propriedade privada e, que por isso, deveria ser abolida.

Muito já foi pensado aí, mas esse foi o primeiro momento que tomei o caminho canhoto e fui ser “gauche na vida”. Lembro-me que após a leitura desse livro me fazia a pergunta: eu deixaria a oportunidade de ter uma tv super moderna para que todo mundo tivesse uma igual? A resposta era sim! Pra quê ter muito, quando se sabe que outros têm tão pouco. Desde então os meus poros se abriram para discursos à esquerda. Nunca fiz essa confissão publicamente como os frequentadores da tal página do Facebook, mas a partir daí me tornei um “ex-direita”.

Esse post parece apenas uma resenha d' "O mundo de Ponta-cabeça" e uma experiência unicamente individual. No entanto, não é. Quis escrever esse texto para mostrar o quanto é fácil criticar coisas que não conhecemos. É muito fácil pensar na lógica do nosso mundo. Quando nos dispomos a ouvir argumentos e aprender outros ponto de vistas se abrem. Infelizmente não é a lógica atual, em que a apresentação de argumentos ao senso comum monolítico é visto como um "bater de frente". Os argumentos se tornam tautológicos: "Você pensa assim porque você é burro. Você é burro porque pensa assim". Argumentos não são necessários porque já há uma ideia formada a priori. Mas enfim, isso é assunto para outro post.

E você quando fez sua travessia? Quando resolveu se posicionar e pegou o caminho da direita ou da esquerda?

Um comentário:

  1. Ainda bem que eu conheci o Jota de 2012 e não o de 2008, porque haveria muita discussão...heheheh
    Que bom que percebeste que a realidade não é una só e que muitos mundos são possíveis.
    Eu acho que sempre fui de esquerda, só não nominava a coisa quando era mais nova.
    Já fui "xingada" de comunista...tive que responder "obrigada". Hehehehe
    É, fomos nos "preparando" para nos conhecer no momento certo ;)
    Bjos meu amor!

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