quinta-feira, 26 de junho de 2014

O argumento tautológico



Segundo o dicionário Houaiss, tautologia, pela lógica, pode ser definida como uma “proposição analítica que permanece sempre verdadeira, uma vez que o atributo é uma repetição do sujeito (o sal é salgado)”. Ainda, segundo a mesma obra, retoricamente é considerada uma “expressão que repete o mesmo conceito já emitido, ou que só desenvolve uma ideia citada, sem aclarar ou aprofundar sua compreensão”. Às vezes é assim que me sinto quando tento debater com certas pessoas.

Adoro conversar com aqueles/as que problematizam e testam minhas afirmações. Procuro ir para qualquer conversa munido de argumentos sobre o que pretendo defender, mas acreditando fielmente que posso sair dali convencido do meu engano. No entanto, para isso, é necessário ouvir a argumentação do outro lado, a partir de opiniões verossímeis e socialmente aceitáveis. Ou seja, há de se argumentar. O que infelizmente não acontece.

Não sei se por falta de educação política ou pura canalhice, o que tem se tornado cada vez mais comum é o argumento tautológico. Que defino como um tipo de ferramenta retórica que não visa a compreensão, mas a simples divisão dos lados que já estavam e eram perceptíveis no início da conversa. Sob essa perspectiva, não há debate, apenas a ratificação de posições já disponíveis. Sai-se como no começo, da mesma maneira que se entrou e com a sensação de tempo perdido. Uma energia intelectual foi gasta por nada.

Como se não adiantasse discutir, você é aquilo que a pessoa já pensava de você anteriormente e toda sua argumentação cabe em uma caixinha pintada, ou de vermelho ou de azul. Essa simplificação é uma infantilização de quem assistiu muito desenho animado, em que só havia dois lados ou o bem ou o mal. Sobre isso, vale ler a resposta do deputado Jean Wyllys a Rodrigo Costantino.




O tipo de “argumento” (se podemos chamar isso de argumento) é quase sempre uma repetição. Repete-se frequentemente invertendo os termos da oração. Algo como se dissessem: você é burro porque é petista, ou, tentando ser mais claro, você é petista porque é burro. Ou, como já ouvi, você pensa assim porque é petista. E, assim, a parlamentação vai.

Naquela situação não pedi uma explicação para essa frase, pois a resposta fatalmente seria algo como “você é petista porque pensa desta forma”. Sinceramente, não adianta você explicar que está à esquerda do PT, que seu pensamento não está fechado em categorias estanques, que o mundo é mais plural do que vermelho e azul, que você pensa daquela forma devido aos pontos apresentados e defendidos. Não adianta. Você já foi normatizado dentro de uma categoria, disponível e compreensível à visão de mundo e intelecto de seu interlocutor.

Já seria uma pena pela falta de diálogo e debate que esse tipo de argumentação exige. Mas é pior. Esse tipo de argumentação é a morte da política. Abre-se espaço para respostas simplistas e salvadoras. Não se escolhe um candidato pelo que é e pelo que fez, mas unicamente porque ele não é (ou é) o outro a ser batido. Não se analisa um movimento por suas reivindicações, mas pelo caos que proporciona ao trânsito.

Com uma educação cada vez pior, o trabalho é assumido por nossa imprensa. Nesse sentido, o monopólio midiático é muito bem utilizado em nome do pensamento acrítico. Movimentos inteiros são deslegitimados com uma palavra: vandalismo. Não se discute. Termos prontos são fornecidos por nossos telejornais, revistas etc, como se fossem suficientes para explicar conflitos. Tamanha é a pobreza e desonestidade intelectual de nossa mídia. O Luís Nassif tem um texto recente muito bom sobre isso:




E são os interlocutores dessa imprensa que encontramos por aí: arautos do “eu li na Veja”. É difícil explicar coisas complexas a cabeças que são resquícios de um mundo bipolar em que as coisas eram mais simples. Russos eram comunistas e americanos capitalistas (ou defensores da liberdade, que para os mais simplistas é quase a mesma coisa). Homens eram homens e se comportavam como homens. Mulheres eram mulheres e se comportavam como mulheres. 


Para os tautológicos é incoerente um índio usando Nike (a não ser que tenha se tornado cidadão, como disse um jornalista porto alegrense). As cotas são uma medida de racismo inverso (não adianta explicar as desigualdades raciais que encontramos nas universidades brasileiras, nem que a cota é social, para quem estudou em escola pública). Mulher tem que gostar de novela e homem de futebol.

Nesse mundo os papéis e lugares estão definidos. Aeroporto não é lugar de pobre (senão parecerá uma rodoviária). Universidade não é lugar de negro (um médico negro então! Mas imagina, racismo não existe no Brasil). A cozinha não foi feita para o homem. Mulher no volante é perigo constante (não adianta as pesquisas que mostram que os homens são os maiores causadores de acidente).

Querem um mundo dado, em que tudo já está definido. Argumentos e construtores destroem o mundo conhecido. Enquanto observam a destruição do antigo e do conhecido se apegam a identidades fixas e monolíticas; “o homem”, o “brasileiro”, a “mulher”, o “cidadão”, etc. Identidades e termos que, ao mesmo tempo, impedem a mudança e deslegitimam o novo. “O mundo sempre foi assim! As coisas são o que são!”. E a melhor definição de um termo é sua repetição: O homem é homem. Ou, então, se define pelo contrário: O homem não é uma mulher.

E assim caminha a humanidade. No mundo tautológico, se você faz uma crítica ao capitalismo, você é comunista. Se se opõe à truculência da polícia ou à forma de funcionamento do metrô do Estado de São Paulo você é petista (ou petralha). Se defende uma melhor distribuição de renda, quer tirar daqueles que trabalharam duro e honestamente. E nisso a simples inversão dos termos viram argumentos.

Sob esses princípios, o debate político se desenvolve. A argumentação se resume em apontar erros do “seu lado”, como se as falhas alheias justificassem às que defende. Vivemos em um mundo de limitadas capacidades de interpretação de texto e de argumentação. O resultado é o esvaziamento da política, que traz como consequência a busca por soluções salvadoras, privatistas e autoritárias.

Mas esses são somente os meus argumentos. Ou talvez eu tenha dito o que disse por ser um petralha. E por isso, dentro da argumentação tautológica, nada disso tem valor. 



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