sexta-feira, 6 de junho de 2014

Viralatice


Vitor Teixeira


No livro O homem e o mundo natural, do historiador Keith Thomas, ele lembra algo importante: somos nós que utilizamos os animais para designar comportamentos e características humanas. A cobra não é traiçoeira, o porco não é sujo, o cachorro não é fiel. Essas são características de homens e mulheres, não de animais. Cobra, porco, cachorro só estão sendo eles mesmos, fazendo algo que é da natureza daqueles bichos. Mesmo assim, as utilizamos para explicar atitudes que não são as nossas. Animalizar os outros é uma tentativa de dar sentido a coisas utilizando animais que nada têm a ver com a história. Quando chamamos alguém de “galinha”, queremos designar um comportamento pouco harmônico com o cacarejar e ciscar da ave.

Assim, em alguma medida, é até injusto associar ao vira-lata um tipo de percepção e sensibilidade frente ao país. O pobre cãozinho nada tem a ver com os nossos problemas de inferioridade. Isso, temos que resolver em sessões de terapia. No entanto, mesmo sabendo tal coisa, a imagem do vira-lata nos ajuda aqui a identificar falas que arrepiam e que são proferidas na lógica do quando pior melhor. Mas por quê?

O vira-lata é aquela espécie sem pedigree, sem raça definida e que recebe a alcunha justamente por andar jogado nas ruas, cheio de pulgas, tombando latas e procurando restos para comer. Há um projeto de parte de nossa elite e de nossa mídia que quer nos convencer de nossa viralatice histórica. No entanto, mais do que uma idiossincrasia, o que percebemos são discursos longamente apresentados para que nunca se busque sair de tal situação subalterna. A propagação de um lugar que é sempre inferior aos outros foi o melhor jeito de deixar as coisas como são.

Há uma vergonha de seu país e de seu povo, como aquele hóspede que diz: “desculpa a bagunça, viu”. Tudo o que vem de fora é melhor, da Belle époque ao cinema pipoca! Estão sempre mais preocupados com o que vão pensar da gente do que apresentar um país que é o nosso. Foi isso que disse o ex-presidente Lula no 4º Encontro de blogueiros e ativistas digitais, mas a nossa mídia vira-lata deu como manchete: “Lula diz que é ‘babaquice’ chegar de metrô dentro de estádio”.

Aqueles que aceitaram e aceitam essa falta de origem como um malefício, acabam caindo em justificações eugênicas e filosofias baratas. A culpa é da miscigenação, diriam alguns retrógrados. Outros diriam que a “essência” ou “identidade” do brasileiro é ser indolente. A escravidão acabou e até hoje dizem que os pobres não gostam de trabalhar. E o que os grupos mais desfavorecidos fazem para provar que essa ideia está errada? Trabalham mais, enriquecendo e engordando os bolsos daqueles que propagam essa ideologia. O viralatismo é um negócio.

O cão, coitado, não sabe sua raça ou hierarquiza nacionalidades. Mas ao contrário, pela dita falta de pureza, nos apegamos a uma inferioridade pela ausência de raízes europeias. Logo exaltamos: sou neto/bisneto de italiano, de alemão, de japonês, etc. No entanto, não se atenta que, na maioria das vezes (há exceções), seus parentes longínquos eram o proletariado urbano e rural impulsionado a buscar do outro lado do oceano o que era impossível se conseguir na Europa. O Brasil já foi objeto de desejo e um lugar buscado para se ter uma vida melhor. Fato que pode causar repulsa nos proponentes do viralatismo.

Anos se passaram e são esses muitos que assumiram para si o discurso vira-lata que criticam camisetas como “100% negro”. É racismo diriam alguns, mas ficar exaltando sua descendência europeia a fim de distinção não é? Talvez fosse uma estratégia de afirmação na época, assim como é a camiseta hoje. O fato é que quanto mais se acende, mais se faz para deixar os outros no mesmo lugar. Quem cresce vira meritocrático e assume o discurso vira-lata. Esse é o perfil de nossa classe média, que não é elite, mas faz de tudo para não permitir que os de “baixo” se aproximem.

Por isso, não mede esforços para falar mal de conquistas sociais como bolsa família, cotas, reclama que os aeroportos estão parecendo rodoviárias, etc. Fala que os programas sociais do governo são esmola, mas se exalta falando do quão caridosa é. Propaga discursos do “sempre que eu posso ajudo”, “do ainda bem que posso dar oportunidade para essas pessoas”, mas morre de medo quando se fala em igualdade social. Igual, nunca? Melhor manter as pessoas dependentes da ajuda alheia. Assim, serão sempre agradecidas. E, diretamente, menos revoltosas.

É engraçado que em um país em que a riqueza é vista como sinal de merecimento e trabalho duro, sejam tão comuns frases como “o brasileiro não gosta de trabalhar”. Tais pessoas, provavelmente, nunca pegaram um transporte público e quando veem uma atriz global, como a Lucélia Santos, em um ônibus isso é logo motivo de alvoroço e sinal de decadência. Misturar-se nunca; é quase um lema. Temos sangue europeu!

E, assim, vamos ganhando olhares tortos nos aeroportos, nas universidades e nos hospitais. Para parte de nossa elite deve ser realmente chocante ver um médico negro. Os cubanos a chocam não apenas por seu destino. Mas o discurso vira-lata ratificava que aquilo não era possível. Esses dias, mexendo no facebook, vi que alguém postou uma receita de um médico cubano que escreveu algo como “ultrasão dos peitos”. Acompanhado a isso, havia uma crítica ao “programa mais médicos” e frases do tipo “olha a qualidade dos médicos que nos estão atendendo”. Mas não adianta a ONU dizer que a medicina em Cuba é a melhor do mundo; o que interessava era desqualificar os médicos cubanos. Na hora pensei: e se fosse um médico americano ou europeu? A reação seria a mesma? Expressões do tipo: “olha que bonitinho, está tentando falar em português”; fatalmente emergiriam.




Invertendo a coisa, a nossa viralatice é tão grande que achamos que temos que falar inglês, francês, etc., de forma perfeita, sem sotaque, pois isso nos diminuiria. A gafe mostraria que não somos do “pedaço”. Achamos engraçado um italiano que fala “I donti understandi” ou um japonês que fala “I don understando”, mas não podemos fazer o mesmo. O que vão pensar da gente? (Por falar nisso, lembrei-me daquela cena do Brad Pitt tentando falar italiano em Bastardos Inglórios. Hilário).

Achamos mais absurdo um presidente que não fala inglês, do que um que não criou uma única universidade federal sequer. O que interessa não são as melhoras obtidas internamente, mas a vergonha que não podemos passar frente aos gringos. O bolsa-família vive ganhando prêmios internacionais, somos uma das maiores economias do mundo, temos vários artistas reconhecidos internacionalmente, mas o que nos interessa ainda são as críticas do Ney Matogrosso, em Portugal, e o Paulo Coelho, na França. Talvez, seja melhor ainda inventar que o Wagner Moura teria dito que não dava mais para viver no Brasil. 

Enfim, o fato é que inexoravelmente o nosso complexo de vira-lata se acentuou com a Copa, quando receberemos milhares de turistas. Novamente fazemos o papel do hóspede desajeitado: “não repara a bagunça”. Tudo parece que vai dar errado e o mundial será um fracasso. Alguns torcem até por uma derrota dentro das quatro linhas para exacerbar nossas deficiências. Quem sabe não ganhe um europeu? Nessa ideologia do quanto pior melhor, declarações como as do ex-zagueiro americano Alexi Lalas devem surpreender:



Ronaldo, que estava no comitê da Copa e não disse nada antes, relatou estar envergonhado frente a Fifa. Mas digo o contrário, a Fifa deve estar rindo à toa. A Copa no Brasil trará para aquela entidade o maior faturamento de sua história. Seu secretário geral, Jeróme Walcke, disse ano passado que o problema do Brasil era ser muito democrático. Não é coincidência que a Federação Internacional tenha escolhido países emergentes entre os Brics para seus últimos torneios: África do Sul, Brasil e Rússia. Lugares com grande crescimento econômico e que estão querendo mostrar a nova cara ao mundo. E, por isso, a dona Fifa poderia sambar à vontade.

A frase do Walcke, em si, já era para causar orgulho. Antes, em outro post, eu disse que o legado político era a herança mais importante que a Copa nos deixou, mas não é só isso. Para horror dos vira-latas, nossa luta foi um exemplo para o mundo. A Fifa não pode simplesmente desembarcar no Brasil, como uma nave extraterrestre e capturar nossa soberania, direitos e povo. E, como disse o jornal alemão sobre os protestos no país: “Obrigado Brasil! [...] finalmente uma democracia se levanta contra a Fifa, uma entidade antidemocrática”. Vai ter Copa, mas vai ter luta. O vira-lata agora dá exemplo de democracia.



Abraços
Jota


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Pós-escrito

Já estava pensando em escrever sobre o viralatismo e alguns textos me impulsionaram a isso. Compartilho aqui com vocês, vale de verdade a leitura:





Ontem, após terminar esse texto, descobri um documentário recente sobre o “Complexo de vira-lata”, vale muito assistir:





Outra coisa extremamente engraçada que vi esses dias foi o tumblr “Só no Brazil!”. Ali o autor captura frases de pessoas sobre coisas que acham que somente poderia acontecer em nosso país. Dá para ver a viralatice mode on. Muito bom! ]





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