quinta-feira, 26 de junho de 2014

O argumento tautológico



Segundo o dicionário Houaiss, tautologia, pela lógica, pode ser definida como uma “proposição analítica que permanece sempre verdadeira, uma vez que o atributo é uma repetição do sujeito (o sal é salgado)”. Ainda, segundo a mesma obra, retoricamente é considerada uma “expressão que repete o mesmo conceito já emitido, ou que só desenvolve uma ideia citada, sem aclarar ou aprofundar sua compreensão”. Às vezes é assim que me sinto quando tento debater com certas pessoas.

Adoro conversar com aqueles/as que problematizam e testam minhas afirmações. Procuro ir para qualquer conversa munido de argumentos sobre o que pretendo defender, mas acreditando fielmente que posso sair dali convencido do meu engano. No entanto, para isso, é necessário ouvir a argumentação do outro lado, a partir de opiniões verossímeis e socialmente aceitáveis. Ou seja, há de se argumentar. O que infelizmente não acontece.

Não sei se por falta de educação política ou pura canalhice, o que tem se tornado cada vez mais comum é o argumento tautológico. Que defino como um tipo de ferramenta retórica que não visa a compreensão, mas a simples divisão dos lados que já estavam e eram perceptíveis no início da conversa. Sob essa perspectiva, não há debate, apenas a ratificação de posições já disponíveis. Sai-se como no começo, da mesma maneira que se entrou e com a sensação de tempo perdido. Uma energia intelectual foi gasta por nada.

Como se não adiantasse discutir, você é aquilo que a pessoa já pensava de você anteriormente e toda sua argumentação cabe em uma caixinha pintada, ou de vermelho ou de azul. Essa simplificação é uma infantilização de quem assistiu muito desenho animado, em que só havia dois lados ou o bem ou o mal. Sobre isso, vale ler a resposta do deputado Jean Wyllys a Rodrigo Costantino.




O tipo de “argumento” (se podemos chamar isso de argumento) é quase sempre uma repetição. Repete-se frequentemente invertendo os termos da oração. Algo como se dissessem: você é burro porque é petista, ou, tentando ser mais claro, você é petista porque é burro. Ou, como já ouvi, você pensa assim porque é petista. E, assim, a parlamentação vai.

Naquela situação não pedi uma explicação para essa frase, pois a resposta fatalmente seria algo como “você é petista porque pensa desta forma”. Sinceramente, não adianta você explicar que está à esquerda do PT, que seu pensamento não está fechado em categorias estanques, que o mundo é mais plural do que vermelho e azul, que você pensa daquela forma devido aos pontos apresentados e defendidos. Não adianta. Você já foi normatizado dentro de uma categoria, disponível e compreensível à visão de mundo e intelecto de seu interlocutor.

Já seria uma pena pela falta de diálogo e debate que esse tipo de argumentação exige. Mas é pior. Esse tipo de argumentação é a morte da política. Abre-se espaço para respostas simplistas e salvadoras. Não se escolhe um candidato pelo que é e pelo que fez, mas unicamente porque ele não é (ou é) o outro a ser batido. Não se analisa um movimento por suas reivindicações, mas pelo caos que proporciona ao trânsito.

Com uma educação cada vez pior, o trabalho é assumido por nossa imprensa. Nesse sentido, o monopólio midiático é muito bem utilizado em nome do pensamento acrítico. Movimentos inteiros são deslegitimados com uma palavra: vandalismo. Não se discute. Termos prontos são fornecidos por nossos telejornais, revistas etc, como se fossem suficientes para explicar conflitos. Tamanha é a pobreza e desonestidade intelectual de nossa mídia. O Luís Nassif tem um texto recente muito bom sobre isso:




E são os interlocutores dessa imprensa que encontramos por aí: arautos do “eu li na Veja”. É difícil explicar coisas complexas a cabeças que são resquícios de um mundo bipolar em que as coisas eram mais simples. Russos eram comunistas e americanos capitalistas (ou defensores da liberdade, que para os mais simplistas é quase a mesma coisa). Homens eram homens e se comportavam como homens. Mulheres eram mulheres e se comportavam como mulheres. 


Para os tautológicos é incoerente um índio usando Nike (a não ser que tenha se tornado cidadão, como disse um jornalista porto alegrense). As cotas são uma medida de racismo inverso (não adianta explicar as desigualdades raciais que encontramos nas universidades brasileiras, nem que a cota é social, para quem estudou em escola pública). Mulher tem que gostar de novela e homem de futebol.

Nesse mundo os papéis e lugares estão definidos. Aeroporto não é lugar de pobre (senão parecerá uma rodoviária). Universidade não é lugar de negro (um médico negro então! Mas imagina, racismo não existe no Brasil). A cozinha não foi feita para o homem. Mulher no volante é perigo constante (não adianta as pesquisas que mostram que os homens são os maiores causadores de acidente).

Querem um mundo dado, em que tudo já está definido. Argumentos e construtores destroem o mundo conhecido. Enquanto observam a destruição do antigo e do conhecido se apegam a identidades fixas e monolíticas; “o homem”, o “brasileiro”, a “mulher”, o “cidadão”, etc. Identidades e termos que, ao mesmo tempo, impedem a mudança e deslegitimam o novo. “O mundo sempre foi assim! As coisas são o que são!”. E a melhor definição de um termo é sua repetição: O homem é homem. Ou, então, se define pelo contrário: O homem não é uma mulher.

E assim caminha a humanidade. No mundo tautológico, se você faz uma crítica ao capitalismo, você é comunista. Se se opõe à truculência da polícia ou à forma de funcionamento do metrô do Estado de São Paulo você é petista (ou petralha). Se defende uma melhor distribuição de renda, quer tirar daqueles que trabalharam duro e honestamente. E nisso a simples inversão dos termos viram argumentos.

Sob esses princípios, o debate político se desenvolve. A argumentação se resume em apontar erros do “seu lado”, como se as falhas alheias justificassem às que defende. Vivemos em um mundo de limitadas capacidades de interpretação de texto e de argumentação. O resultado é o esvaziamento da política, que traz como consequência a busca por soluções salvadoras, privatistas e autoritárias.

Mas esses são somente os meus argumentos. Ou talvez eu tenha dito o que disse por ser um petralha. E por isso, dentro da argumentação tautológica, nada disso tem valor. 



terça-feira, 10 de junho de 2014

Virada à esquerda!


Gravura do frontispício do poema "The World turn'd upside down" de John Taylor



“A liberdade é o homem que girará o mundo de cabeça para baixo, por isso não espanta que tenha tantos inimigos”.
G. Winstanley


Esses dias, estava lendo os comentários dessas páginas de esquerda no Facebook. Geralmente encontramos “miguxos” falando que o capitalismo é justo, endeusando a Margareth Tatcher e o Ronald Reagan, tentando justificar que o nazismo foi uma experiência de esquerda, etc. No entanto, para minha surpresa, vi muitas pessoas se dizendo “ex-direita”. No começo achei engraçado, porque era algo quase religioso, como se dissessem: Andava mal, aí encontrei a luz! A graça, todavia, acabou quando lembrei que eu mesmo passei por esse processo. Comecei a pensar nele e tudo ficou claro!

Acho que nunca fui de direita. Na verdade, nem sabia o que era ser de direita ou de esquerda. Eu era um roqueiro que me achava muito politizado por cantar “Que país é esse?”. Hoje vejo com vergonha certas declarações e canções de alguns músicos. Na mesma época comecei a tocar guitarra, profissão que havia escolhido. Idolatrava as opiniões dos meus professores de instrumento. Achava “foda” os comentários do Arnaldo Jabor, etc. Sentia-me um adolescente politizado.

Minha primeira desavença com o Jabor nem foi política, foi musical. Em decorrência da morte do Dimebag Darrell, antigo guitarrista do Pantera, ele falou uma merda imperdoável. Comparou shows de rock a missas negras fascistas e quase disse que o Dimebag foi culpado de seu próprio assassinato, devido à violência que era pregada nas músicas do grupo. Para quem tocava riffs como “Cowboys from Hell”, e balançava a cabeça ao som de “Mouth for war” e “I’m broken”, escutar uma besteira dessas era doído. Sempre escutei Pantera e nunca quis matar ninguém. Era o típico comentário daquela galera que queria impedir os vídeo-games porque eram muito violentos, mas não se preocupavam com a violência do mundo. Veja a reportagem do Jornal da Globo abaixo:




Agora, se ele falava uma idiotice dessas comentando de música, imagina de política. Mas não pensei nisso, só deixei de escutá-lo (fiz bem). Mas isso foi fim de 2004 (porra, já vai fazer 10 anos que o Dimebag morreu!!!). Em 2005 entrei na faculdade de música. Durante todo esse período, minha leitura mais social das mazelas da sociedade vinha da religião. E, até por causa disso, minha “ajuda” não ia além da caridade. Era contra políticas públicas para a interrupção de uma gravidez indesejada, era meio “homofóbico” (não tinha realmente fobia, desde que gays não chegassem perto de mim), fazia piadinhas preconceituosas, achava o comunismo um absurdo, pois aprendi na escola que o capitalismo é que era bom, pois você tinha “liberdade”, etc. E, assim, caminhava meu pensamento político. Não sei se era de direita, mas pelo menos era um ignorante, hehe. Tá, eu era um reacinha sim.

Em 2007 entrei na faculdade de história e entrei em crise. Minha forma unívoca de pensar as coisas era pouco condizente com a diversidade e pluralidade que as questões eram apresentadas. No começo, achei que teria uma aula de cursinho um pouco mais alongada. Confesso que fiquei um pouco decepcionado com o curso e até pensei em trancar. Achava um absurdo ter que entender o que foi o “Renascimento” para três ou quatro autores. “O” Renascimento não tinha sido um só? Para mim, era complicado entender que havia uma pluralidade de opiniões. Mas, enfim, decidi dar uma chance ao curso.

Proferia discursos do tipo: o problema do Brasil é que os patrões pagam muitos encargos; ah vai, pode ser bicha, mas não precisa se afetar, etc. Via com desconfiança a camiseta do MST do Cainho (um beijo Cainho): como assim, usar uma camiseta desses baderneiros que “invadem” a propriedade dos outros. Mas não dizia nada. Enfim, logo percebi que o que conhecia da vida havia sido moldado pela mídia brasileira. Ou seja, não conhecia nada. A sociedade era mais complexa. Para alguém que vinha do interior de São Paulo, as experiências, contatos e leituras foram fundamentais para a alteração da minha mentalidade. Um novo mundo se abria!

Naquele ano, ainda, me envolvi com o C.A de história. Além dos bares, minha formação se deu nas assembleias gerais! Foi um processo muito importante. Escutava coisas que não concordava, mas levava para casa e refletia melhor. Era uma ofensa ser chamado de “pelego” e precisava pensar direito antes de falar. Com minha experiência de professor de música e dos palcos nunca tive vergonha de falar em público. Então, pegava o microfone e ia à frente falar as minhas opiniões, que, à época, se ainda não eram totalmente de esquerda, no mínimo eram diferentes daquelas que tinha antes de entrar na faculdade.

A virada à esquerda tinha sido iniciada. A experiência foi fundamental nisso. Depois te conviver com muitos amigos gays fantásticos, feministas e de movimentos sociais, deixei de pensar coisas escrotas do tipo: nada contra, mas... A experiência com a assembleia me fez questionar hierarquias e autoridades. Passei a enxergar que os de cima nem sempre querem o melhor para você. Enfim, mas ainda faltava ainda um arcabouço metodológico.

Isso veio com um livro: O mundo de ponta-cabeça, do historiador marxista inglês Christopher Hill. Nesse texto, o autor trabalhava as ideias radicais das seitas puritanas durante a Revolução Inglesa. Grupos como os levellers, diggers, ranters, quacres, etc., eram apresentados. Gostava da época (século XVII), do lugar (Inglaterra) e do tema (Revolução Inglesa). Isso, mais o fato do meu professor à época (hoje meu orientador) falar que esse era seu livro favorito me desarmou, mesmo sabendo que era um “historiador marxista”. Achava que sabia o que ia encontrar lá: alguém tentando mostrar como o capitalismo era perverso. De fato foi isso que encontrei, mas terminei o livro concordando com o Hill.

Christopher Hill se propunha estudar a revolução dentro da Revolução. Ou seja, os movimentos populares que se insurgiram com as novas possibilidades que se abriram durante as décadas de 1640-1660, mas que foram reprimidos, depois que o poder político foi conquistado. A típica atitude do “valeu, obrigado por ajudarem a gente, mas vocês são muito radicais. Então, voltem para o submundo agora. Não precisamos mais de vocês”. Hoje, vejo aqueles que tentam cooptar os movimentos sociais para criticar o governo com aquela sensação de “já vi esse filme”.


Comentário no vídeo "Juca Kfouri e o protesto legítimo de sem teto"


Sempre fui de escrever muito nas margens dos textos que lia, ainda mais nesse período (2008) em que não tinha muitas referências para comparar. O mundo de Ponta-cabeça foi o primeiro livro que li sobre esse tema, que hoje já vão uma iniciação científica e uma dissertação de mestrado. O fato é que, naquele momento, tudo era novo para mim. Não apenas o assunto, mas a abordagem. Nisso, as marginálias denunciam minha busca por tentar entender aquele mundo novo seiscentista. Mas, mais do que isso, revelam a minha mudança; o momento em que tomei o caminho à esquerda.

Já li algumas vezes esse livro, assim não sei se as anotações são da primeira, da segunda, da terceira ou da quarta vez que o li. Mas só foi necessária uma leitura para tomar o caminho à esquerda. Sei que alguns comentários são da vez inicial porque há um grande “X” em cima do comentário. Como se falasse, “você está defecando pela boca, Jota de 2008”.

Além dos meus desenhos engraçados para representar que o rei Carlos I era considerado o Anticristo durante a guerra civil, os assuntos e as anotações são diversos. Mas, lembro que o que mais me chamou a atenção e contribuiu para essa mudança de direção foi a análise que o Hill faz do movimento digger ou os chamados levellers autênticos.

O livro mostra minha indignação crescente. Em um tópico sobre as tentativas de acabar com os terrenos comunais e as “justificativas” ideológicas para isso, escrevi um “que cuzão!” na margem. Era como se as merdas que vieram posteriormente tivessem tido origem ali. Segundo um autor coevo, “a existência de terrenos comunais de pastagem... somente perpetua a indolência e a mendicância dos camponeses pobres”. Sim, esse é um discurso de um inglês seiscentista e não de um brasileiro do século XXI falando sobre o “bolsa-família”.

Mas como dizia, antes da minha digressão indignada, o capítulo que mais me chocou foi o sétimo, em que o historiador falava dos diggers, os comunistas do século XVII como chamou. O movimento é conhecido por tomar a colina de St. George e implantar ali um sistema de posse comunal da terra.

Levantavam-se contra a opressão dos ricos e nobres, defendiam discursos igualitaristas baseados na igualdade de nascimento entre os homens, professavam que a propriedade privada era uma prática anticristã, etc. O movimento é, sem dúvida, o queridinho de Christopher Hill e o pensamento de seu líder Gerrard Winstanley, certamente um dos mais estudados pelo historiador.

Chritopher Hill

Winstanley falava contra o mau aproveitamento da terra e de uma melhor distribuição, coisa que se fosse realizada faria da Inglaterra a nação mais poderosa. Para ele, democracia política era similar à democracia econômica. Não poderia haver igualdade em um lugar onde houvesse propriedade privada. Nisso, a dignidade humana só seria possível dentro de uma propriedade comunal da terra. Pra mim, criado na mente do “capitalismo é o melhor” era um pouco chocante essa outra perspectiva. Aí começam os meus comentários/conversas com o texto.

Em uma margem escrevi o seguinte comentário, a respeito de uma economia comunal: “se não houvesse compra e venda, não haveria avanço industrial. Ninguém investiria em algo assim para não obter lucro. A não ser que a indústria fosse regulada pelo Estado, mas a ideia era acabar com o Estado. Então ficamos ai em uma aporia”. Vergonha do Jota de 2008, que só conseguia pensar na chave que conhecia. Mas a pergunta era pertinente. Ficar em dúvida é o que não podia. Mesmo que o Hill não fosse responder, a solução do problema já se encontrava no próprio texto.

Para Winstanley, a divisão de trabalho existente deveria ser extinta e recompensas para invenções fomentadas. Segundo indicava, o medo da pobreza é que impedia inovações. É sintomático pensar isso em nossa sociedade, em que a necessidade de pagar as contas nos impede de produzir para nós e para o bem e desenvolvimento da sociedade. De quem é o nosso tempo? De quem é o fruto de nosso trabalho? Nas palavras do líder digger, “o poder régio esmagou a inspiração de conhecer e jamais permitiria que esta se alçasse em toda a sua beleza e plenitude”. Era aquela estrutura que criticava que impedia o desenvolvimento. Seu pensamento visava o florescimento do país, da república e de seu povo e não o simples aumento da produção, aos moldes dos economistas atuais.

Conforme explicava, “a defesa da propriedade e do interesse individual divide o povo de um país e do mundo todo em partidos, e por isso é a causa de todas as guerras, carnificinas e pendências que vemos por toda parte”. O mal era a propriedade privada e, que por isso, deveria ser abolida.

Muito já foi pensado aí, mas esse foi o primeiro momento que tomei o caminho canhoto e fui ser “gauche na vida”. Lembro-me que após a leitura desse livro me fazia a pergunta: eu deixaria a oportunidade de ter uma tv super moderna para que todo mundo tivesse uma igual? A resposta era sim! Pra quê ter muito, quando se sabe que outros têm tão pouco. Desde então os meus poros se abriram para discursos à esquerda. Nunca fiz essa confissão publicamente como os frequentadores da tal página do Facebook, mas a partir daí me tornei um “ex-direita”.

Esse post parece apenas uma resenha d' "O mundo de Ponta-cabeça" e uma experiência unicamente individual. No entanto, não é. Quis escrever esse texto para mostrar o quanto é fácil criticar coisas que não conhecemos. É muito fácil pensar na lógica do nosso mundo. Quando nos dispomos a ouvir argumentos e aprender outros ponto de vistas se abrem. Infelizmente não é a lógica atual, em que a apresentação de argumentos ao senso comum monolítico é visto como um "bater de frente". Os argumentos se tornam tautológicos: "Você pensa assim porque você é burro. Você é burro porque pensa assim". Argumentos não são necessários porque já há uma ideia formada a priori. Mas enfim, isso é assunto para outro post.

E você quando fez sua travessia? Quando resolveu se posicionar e pegou o caminho da direita ou da esquerda?

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Viralatice


Vitor Teixeira


No livro O homem e o mundo natural, do historiador Keith Thomas, ele lembra algo importante: somos nós que utilizamos os animais para designar comportamentos e características humanas. A cobra não é traiçoeira, o porco não é sujo, o cachorro não é fiel. Essas são características de homens e mulheres, não de animais. Cobra, porco, cachorro só estão sendo eles mesmos, fazendo algo que é da natureza daqueles bichos. Mesmo assim, as utilizamos para explicar atitudes que não são as nossas. Animalizar os outros é uma tentativa de dar sentido a coisas utilizando animais que nada têm a ver com a história. Quando chamamos alguém de “galinha”, queremos designar um comportamento pouco harmônico com o cacarejar e ciscar da ave.

Assim, em alguma medida, é até injusto associar ao vira-lata um tipo de percepção e sensibilidade frente ao país. O pobre cãozinho nada tem a ver com os nossos problemas de inferioridade. Isso, temos que resolver em sessões de terapia. No entanto, mesmo sabendo tal coisa, a imagem do vira-lata nos ajuda aqui a identificar falas que arrepiam e que são proferidas na lógica do quando pior melhor. Mas por quê?

O vira-lata é aquela espécie sem pedigree, sem raça definida e que recebe a alcunha justamente por andar jogado nas ruas, cheio de pulgas, tombando latas e procurando restos para comer. Há um projeto de parte de nossa elite e de nossa mídia que quer nos convencer de nossa viralatice histórica. No entanto, mais do que uma idiossincrasia, o que percebemos são discursos longamente apresentados para que nunca se busque sair de tal situação subalterna. A propagação de um lugar que é sempre inferior aos outros foi o melhor jeito de deixar as coisas como são.

Há uma vergonha de seu país e de seu povo, como aquele hóspede que diz: “desculpa a bagunça, viu”. Tudo o que vem de fora é melhor, da Belle époque ao cinema pipoca! Estão sempre mais preocupados com o que vão pensar da gente do que apresentar um país que é o nosso. Foi isso que disse o ex-presidente Lula no 4º Encontro de blogueiros e ativistas digitais, mas a nossa mídia vira-lata deu como manchete: “Lula diz que é ‘babaquice’ chegar de metrô dentro de estádio”.

Aqueles que aceitaram e aceitam essa falta de origem como um malefício, acabam caindo em justificações eugênicas e filosofias baratas. A culpa é da miscigenação, diriam alguns retrógrados. Outros diriam que a “essência” ou “identidade” do brasileiro é ser indolente. A escravidão acabou e até hoje dizem que os pobres não gostam de trabalhar. E o que os grupos mais desfavorecidos fazem para provar que essa ideia está errada? Trabalham mais, enriquecendo e engordando os bolsos daqueles que propagam essa ideologia. O viralatismo é um negócio.

O cão, coitado, não sabe sua raça ou hierarquiza nacionalidades. Mas ao contrário, pela dita falta de pureza, nos apegamos a uma inferioridade pela ausência de raízes europeias. Logo exaltamos: sou neto/bisneto de italiano, de alemão, de japonês, etc. No entanto, não se atenta que, na maioria das vezes (há exceções), seus parentes longínquos eram o proletariado urbano e rural impulsionado a buscar do outro lado do oceano o que era impossível se conseguir na Europa. O Brasil já foi objeto de desejo e um lugar buscado para se ter uma vida melhor. Fato que pode causar repulsa nos proponentes do viralatismo.

Anos se passaram e são esses muitos que assumiram para si o discurso vira-lata que criticam camisetas como “100% negro”. É racismo diriam alguns, mas ficar exaltando sua descendência europeia a fim de distinção não é? Talvez fosse uma estratégia de afirmação na época, assim como é a camiseta hoje. O fato é que quanto mais se acende, mais se faz para deixar os outros no mesmo lugar. Quem cresce vira meritocrático e assume o discurso vira-lata. Esse é o perfil de nossa classe média, que não é elite, mas faz de tudo para não permitir que os de “baixo” se aproximem.

Por isso, não mede esforços para falar mal de conquistas sociais como bolsa família, cotas, reclama que os aeroportos estão parecendo rodoviárias, etc. Fala que os programas sociais do governo são esmola, mas se exalta falando do quão caridosa é. Propaga discursos do “sempre que eu posso ajudo”, “do ainda bem que posso dar oportunidade para essas pessoas”, mas morre de medo quando se fala em igualdade social. Igual, nunca? Melhor manter as pessoas dependentes da ajuda alheia. Assim, serão sempre agradecidas. E, diretamente, menos revoltosas.

É engraçado que em um país em que a riqueza é vista como sinal de merecimento e trabalho duro, sejam tão comuns frases como “o brasileiro não gosta de trabalhar”. Tais pessoas, provavelmente, nunca pegaram um transporte público e quando veem uma atriz global, como a Lucélia Santos, em um ônibus isso é logo motivo de alvoroço e sinal de decadência. Misturar-se nunca; é quase um lema. Temos sangue europeu!

E, assim, vamos ganhando olhares tortos nos aeroportos, nas universidades e nos hospitais. Para parte de nossa elite deve ser realmente chocante ver um médico negro. Os cubanos a chocam não apenas por seu destino. Mas o discurso vira-lata ratificava que aquilo não era possível. Esses dias, mexendo no facebook, vi que alguém postou uma receita de um médico cubano que escreveu algo como “ultrasão dos peitos”. Acompanhado a isso, havia uma crítica ao “programa mais médicos” e frases do tipo “olha a qualidade dos médicos que nos estão atendendo”. Mas não adianta a ONU dizer que a medicina em Cuba é a melhor do mundo; o que interessava era desqualificar os médicos cubanos. Na hora pensei: e se fosse um médico americano ou europeu? A reação seria a mesma? Expressões do tipo: “olha que bonitinho, está tentando falar em português”; fatalmente emergiriam.




Invertendo a coisa, a nossa viralatice é tão grande que achamos que temos que falar inglês, francês, etc., de forma perfeita, sem sotaque, pois isso nos diminuiria. A gafe mostraria que não somos do “pedaço”. Achamos engraçado um italiano que fala “I donti understandi” ou um japonês que fala “I don understando”, mas não podemos fazer o mesmo. O que vão pensar da gente? (Por falar nisso, lembrei-me daquela cena do Brad Pitt tentando falar italiano em Bastardos Inglórios. Hilário).

Achamos mais absurdo um presidente que não fala inglês, do que um que não criou uma única universidade federal sequer. O que interessa não são as melhoras obtidas internamente, mas a vergonha que não podemos passar frente aos gringos. O bolsa-família vive ganhando prêmios internacionais, somos uma das maiores economias do mundo, temos vários artistas reconhecidos internacionalmente, mas o que nos interessa ainda são as críticas do Ney Matogrosso, em Portugal, e o Paulo Coelho, na França. Talvez, seja melhor ainda inventar que o Wagner Moura teria dito que não dava mais para viver no Brasil. 

Enfim, o fato é que inexoravelmente o nosso complexo de vira-lata se acentuou com a Copa, quando receberemos milhares de turistas. Novamente fazemos o papel do hóspede desajeitado: “não repara a bagunça”. Tudo parece que vai dar errado e o mundial será um fracasso. Alguns torcem até por uma derrota dentro das quatro linhas para exacerbar nossas deficiências. Quem sabe não ganhe um europeu? Nessa ideologia do quanto pior melhor, declarações como as do ex-zagueiro americano Alexi Lalas devem surpreender:



Ronaldo, que estava no comitê da Copa e não disse nada antes, relatou estar envergonhado frente a Fifa. Mas digo o contrário, a Fifa deve estar rindo à toa. A Copa no Brasil trará para aquela entidade o maior faturamento de sua história. Seu secretário geral, Jeróme Walcke, disse ano passado que o problema do Brasil era ser muito democrático. Não é coincidência que a Federação Internacional tenha escolhido países emergentes entre os Brics para seus últimos torneios: África do Sul, Brasil e Rússia. Lugares com grande crescimento econômico e que estão querendo mostrar a nova cara ao mundo. E, por isso, a dona Fifa poderia sambar à vontade.

A frase do Walcke, em si, já era para causar orgulho. Antes, em outro post, eu disse que o legado político era a herança mais importante que a Copa nos deixou, mas não é só isso. Para horror dos vira-latas, nossa luta foi um exemplo para o mundo. A Fifa não pode simplesmente desembarcar no Brasil, como uma nave extraterrestre e capturar nossa soberania, direitos e povo. E, como disse o jornal alemão sobre os protestos no país: “Obrigado Brasil! [...] finalmente uma democracia se levanta contra a Fifa, uma entidade antidemocrática”. Vai ter Copa, mas vai ter luta. O vira-lata agora dá exemplo de democracia.



Abraços
Jota


*******

Pós-escrito

Já estava pensando em escrever sobre o viralatismo e alguns textos me impulsionaram a isso. Compartilho aqui com vocês, vale de verdade a leitura:





Ontem, após terminar esse texto, descobri um documentário recente sobre o “Complexo de vira-lata”, vale muito assistir:





Outra coisa extremamente engraçada que vi esses dias foi o tumblr “Só no Brazil!”. Ali o autor captura frases de pessoas sobre coisas que acham que somente poderia acontecer em nosso país. Dá para ver a viralatice mode on. Muito bom! ]





terça-feira, 3 de junho de 2014

O legado político da Copa

Vitor Teixeira


Certas imagens têm o poder de sintetizar um aglomerado de palavras. Foi o que aconteceu quando vi essa ilustração do Vitor Teixeira que inicia esse post. No meu texto anterior, critiquei aqueles que se apropriavam do discurso da precarização da saúde e educação para criticar a Copa e o governo federal unicamente. Pura ingenuidade e desonestidade, como tentei mostrar, a precarização é um projeto de longo prazo. Em alguma medida, aquele post procurou se opor aos discursos direitistas e senso comum que pretendem atribuir raízes momentâneas à problemas com raízes históricas distantes. Aqueles que clamam por hospitais e escolas padrão Fifa, em maioria, são aqueles que estudaram em instituições de ensino privada e pouco pisaram em um hospital público. 

No entanto, como mostra a ilustração, há dois movimentos. Um em que o alvo de luta é muito mais abrangente, à esquerda de tudo isso. E no qual a pauta é mais social e menos política (política no sentido estrito e pobre do termo). E outro cuja crítica se centra unicamente em um governante ou um partido. Nisso a vaia que a Dilma recebeu na abertura da Copa das Confederações é sintomática.

O mote “Copa pra quem?” exaltado por muitos movimentos sociais nos ajuda a refletir sobre esse protesto ruidoso. Quem pode estar nos estádios? Eu, você, os trabalhadores, os moradores das comunidades desapropriadas? Não! Quem estava nas “arenas” eram os ricos e privilegiados (com raras exceções), justamente aqueles que vaiam o atual governo por ter implantado medidas que atingiam de frente aos seus privilégios, como bolsa família, expansão universitária, cotas, programa mais médicos, etc. Lógico que esse “bater de frente” teve seus limites. Sabemos que a base governista é uma zona, agregando intenções e interesses distintos. Lógico que talvez a vaia fosse justificada, mas era uma vaia por privilégios.

Indo para um pano bem pessoal. Lembro que almoçava com meu pai quando o Brasil foi anunciado sede da Copa de 2014. Na época fiquei bem feliz. Seria um sonho ver um jogo do mundial, nem que fosse um jogo menor; só para falar: eu fui. No entanto, conjuntamente às chamadas de compras de ingresso vi que isso era uma ilusão. Essa Copa não era pra mim. Sinceramente nem cheguei a ver os preços no site. Apenas as conversas indiretas com amigos foram suficientes para desmanchar esse engano. Essa Copa não havia sido feita pra mim.

Por isso, sou contra o argumento de que não adianta fazer protesto agora. Ninguém sabia o rumo que a coisa ia levar. Por isso, como mostrou Jorge Luiz Souto Maior, em um dos melhores textos que li sobre a Copa, a aprovação do evento no Brasil caiu de 79% em 2008 para 48% em 2014. Ninguém foi consultado antes, isso desde a primeira eleição do Brasil para a Copa de 2006, e “nenhum silêncio do povo pode ser utilizado como fundamento para justificar o abalo das instituições do Estado de Direito, vez que assim toda tirania, baseada na força e no medo, estaria legitimada”.

Nesse texto, o jurista discorre que não há mais sentido discutir se vai ou não ter Copa, simplesmente porque a “Copa já era”. Nada poderá reverter os danos que as famílias dos trabalhadores mortos ou desapropriadas sofreram. A Lei Geral da Copa permitiu que a nossa constituição e soberania fossem ignoradas. As condições de trabalho impostas nas obras foram horrendas, com denúncias de escravidão e infrações à legislação trabalhista. Ou seja, a “Copa já era”.

Quando andamos pelas ruas, não vemos decorações. Ao pegar transporte público não escutamos debates sobre escalação e sobre favoritos. A Copa é aquele objeto que de longe parece lindo, mas de perto tem um cheiro insuportável. E nisso, as arbitrariedades da Fifa ajudaram muito. Ficam muito preocupados em não fazer vergonha frente à dona Fifa, que permitem que os maiores abusos sejam perpetrados. Mas a proximidade da Copa teve seu lado bom!

Enquanto os coxinhas, com viralatices, exaltam o slogan “só no Brasil, viu”, e torcem para tudo dar errado, trazendo a vergonha externa ao país. Emergiu um Brasil de luta. Apesar das inúmeras derrotas, algumas vitórias políticas foram obtidas. Se não nos foi deixado um legado social, indiscutivelmente o Brasil se levantou em organização política, contra uma Copa que não foi feita para o seu povo. Esse é o maior legado construído. O artigo abaixo dá exemplos dessas organizações e conquistas:


Futebol e política sempre foram coisas compatíveis. Vitórias no futebol, como sabemos, serviram para justificar governos autoritários ou amenizar crises. Em paralelo, ajudavam a legitimar o que estava errado. No entanto, desde 2012 vemos que futebol e política, quando contrários, fragilizavam e tensionavam essa matéria. O futebol se chocou com a sociedade e essa se levantou pelo direito daquilo que lhe foi subtraído por governos municipais, estaduais e federal. O evento de um mês não era uma justificativa realmente plausível para que direitos e vidas fossem afetadas para além de Junho, como aconteciam com as desapropriações, invasões do público pelo privado, etc. Nem tudo ocorreu como desejado, mas manifestações públicas e comitês populares ganharam corpo, propondo alternativas e indicando os prejuízos sociais trazidos por aquele evento cujo povo estava excluído.

As manifestações de junho de 2013 são fruto de um descontentamento, nem sempre diretamente ligado ao futebol, e de uma luta por expansão de direitos. O “não é só por 20 centavos” começou por melhorias no transporte público e agregou diversas reivindicações históricas e levaram às ruas movimentos há muito em luta. De repente, a grande mídia, que antes achava as manifestações puro vandalismo, começou a exaltar os acontecimentos. Eu não participei de nenhuma manifestação devido a problemas de saúde, mas pelo facebook era possível sentir o teor da manifestação do dia 17. Sob o lema do “gigante acordou”, milhares de coxecos que nunca estiveram nas ruas começaram a levantar milhares de bandeiras conservadoras, como intervenção militar, redução da maioridade penal, ideologias supostamente "sem partido", etc. Felizmente a diminuição na tarifa de ônibus foi obtida e a decisão do MPL de não convocar mais atos foi extremamente acertada. A pluralidade de vozes acelerou o fim de junho. 

Um ano se passou e estamos novamente em junho. Enquanto muitos estarão nas ruas, cheirando gás lacrimogêneo e tomando tiros de balas de borracha, excluídos social e financeiramente do evento; outros estarão nos estádios ou ignoraram a Copa, por acharem que um fracasso futebolístico representaria um fracasso político nas próximas eleições. Quem já não escutou o “agora é só torcer para o Brasil perder para esse governo petralha sair”. Ingênuos, como bem lembrou Leonardo Sakamoto, a continuidade de um governo, pelo menos no período democrático, não tem a ver com sucessos futebolísticos. O Brasil perdeu em 1998 e o FHC continuou, houve vitória em 2002 e o Brasil elegeu outro partido, em 2006 não foi nem a histeria da mídia em exaltar o mensalão, nem a perda da copa que prejudicaram a reeleição de Lula. Em 2010, a Dilma foi eleita e o PT se manteve do governo federal mesmo com a desclassificação para a Holanda. Assim, podem torcer para o Brasil perder, mas isso provavelmente terá pouco a ver com uma vitória ou derrota eleitoral. No entanto, os protestos vão acontecer, independente de quem estiver no poder. A Copa transformou o brasileiro em um ser intimamente político. Querer impedir os protestos é tentar barrar o maior legado que nos foi deixado, já que outros nos passaram longe.

Apesar de sentir que essa Copa não foi feita para mim, já fiz minha escolha. Apesar de tudo, vou torcer para o Brasil. Gosto de futebol, gosto de Copa do Mundo e apesar da podre proximidade do evento vou torcer para a seleção. Essa Copa não foi feita pra mim mesmo, então vou assisti-la como se fosse na Alemanha ou na África do Sul. Lógico que essa posição não está disponível para as famílias desalojadas, por exemplo. Há muitos problemas conhecidos (juro que falarei deles ainda essa semana), mas não torcer para o Brasil gostando de futebol é como não escutar Rock por tudo o que os EUA representam. De resto, fico com a política, dessa não tenho como ser excluído.

Vi essa imagem esses dias no Facebook e achei muito interessante.


Também fico com a impressão do comentarista esportivo e cientista social, Juca Kfouri em uma passeata do MTST. Apesar de tudo vão torcer para o Brasil. A crítica à Copa tem pouco a ver com as eleições de outubro e o futebol jogado em campo em junho. Mas o legado político, esse emergiu sem qualquer verba governamental! Ou quem sabe, devido à sua falta.





O povo fora dos estádios, mas nas ruas! Essa é uma conquista maior do que o Hexa!


Carlos Latuff


Abraços
Jota